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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela m...

Deus e a maldade


As Filhas de Loth de Lucas van Leyden, 1521.

O homem, confinado em seus pensamentos, se vê encarcerado na mais peculiar prisão que Deus, em toda sua engenhosidade sádica ao criar o ser humano, pôde conceber. O cérebro humano, esse delicado, porém complexo – o mais complexo, diga-se de passagem – órgão já produzido pela inteligência sobrenatural da natureza em arquitetar e congregar membranas e fluidos, conjuga todas as angústias, todos os medos, todos os ódios e ressentimentos do homem. Uma única bala de revolver atravessando a massa encefálica e toda a maldade inerente ao homem se esvai. 

Mas nos atentemos ao milagre da vida que Deus, esse grandioso pregador de peças concebeu com seu plano em incrementar no órgão cérebro toda a potencialidade de maldade do homem. Veja-se por este lado: todos os outros órgãos e membros do homem, os efetuadores do mal pelo fator da violência, não se concretizam no ato sem o poder do cérebro em lhes pensarem previamente. Mas será que a vontade é algo que nasce no cérebro? Será que é somente nessa massa cinzenta que o homem pari sua violência, sua maldade? Pois é claramente evidente que todos os demônios e monstros já uma vez imaginados pelo homem partiram desse labirinto de carne consumando toda podridão conceitual ou efetiva das pulsões do animal homem. Sejam por conexões de neurotransmissores ou de impulsos elétricos, tudo parte dessa fonte ainda completamente desconhecida ao próprio homem de si mesmo. 

Todo massacre e carnificina, toda grotesca podridão virulenta de holocaustos e cataclismos históricos que envergonharam a imagem do homem perante si mesmo nada mais são do que produto de sua própria imperfeição como um aborto do divino. Deus pregou a mais gloriosa peça no homem em lhe incrementar no cérebro a necessidade daquilo que ele mais nega: o animal. O animal é a essência obscura do homem ao qual, selvagem e brutal, o homem tenta desesperadamente escapar com seu ideal de perfeição e beleza, igualmente com seu ideal falsificado de um deus do Bem. Deus, ao contrário, é um deus brincalhão, trapaceiro, risonho, apreciador da grande tragédia que é o homem com o cérebro de um animal. O homem, esse ser tão desenvolvido intelectualmente e tão arrogante com sua preciosa racionalidade, nada se diferencia do cão. 

O Diabo sempre foi difamado como a figura maligna das histórias míticas, num maniqueísmo bobo como se houvesse de fato um bem que deveria conter esse mal. Muito pelo contrário: o mal nada mais é do que atributo de Deus, parte de sua essência e criação sua para fundar a perfeição da natureza. Deus e o Diabo são uma só coisa, e muitas vezes, a figura de Deus é muito mais perversa do que a imagem mítica do Diabo. A imagem do divino foi por muito tempo pervertida e prostituída em favor de uma perfeição bela e gloriosa, sendo que sua essência se entrega na violência cruel que tudo consome, tudo transforma e tudo organiza e reorganiza. 

Estabelecer os termos “bem” e “mal” para Deus é de uma infantilidade patética e deprimente, mas se ainda estamos viciados nesse ranço moral, que reconheçamos - pela noção religiosa comum - que Deus é Mal, pois se o Bem se traduz pelo que é belo, imutável, perfeito e justo, o Mal de Deus exprime a realidade nua e crua do mundo e do cosmos tal como ele é sem as lentes foscas da religião: a morte, a decomposição, a degradação, a crueldade do tempo e do movimento, a injustiça da vida que não favorece nada nem ninguém intencionalmente. Deus é o Ser idiota por excelência, pois não trabalha sob o princípio de causalidade, somente de casualidade. Tentar encontrar qualquer pressuposto de ordem - seja moral, seja natural, seja metafísico - na natureza de Deus, é estar fadado ao erro, como qualquer conjectura possível sobre Deus está fadada ao erro. Deus se traduz como um fundo de desconhecimento abstrato e escuro incompreensível, uma grande noite enuviada estando perdido num mar tempestuoso.

Enfim, o homem não é um erro de Deus, muito pelo contrário, é sua mais ardilosa produção, o mais astucioso artifício de um mestre artesão e construtor de enigmas capaz de arquitetar o complexo dédalo de fibras, sangue e vísceras que é o cérebro humano com o único intuito de questionar a existência de seu criador assim como de causar o mal que este mesmo criador introduziu ali de forma a prioriDeus: a criança eterna que joga com o homem e com o mundo para satisfazer sua crueldade sádica cujo prazer infinito de destruição não cessa, mas que se renova sempre e cada vez mais criando novas brincadeiras para seu divertimento. A resposta para não se desesperar com o sadismo de Deus é o próprio homem obter um prazer doentio, quiçá masoquista, de sua condição tragicômica de existência enquanto brinquedo, um deleite ardente de seu status de materialidade abundante de gozo pela carne, tornar a vontade de crueldade de Deus a própria vontade de crueldade do homem, levar ao extremo o esquema de Deus para ver até onde seu plano de homem vai e orgulhar o Pai com todo o poder do Filho. 

E não é digno do homem - para mostrar para Deus a extensão de seu poder e de sua crueldade - se tornar também um deus e criar, por sua vez, um novo deus, num ciclo inquebrável de crueldade em que este novo fruto tenha que produzir de forma cruel um novo homem como forma de perpetuar eternamente a semente da maldade?

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