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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

O desejo de criar


 Noite Estrelada de Vincent van Gogh, 1889. 

Por todos os meus poros se exalam solidão. Sufoca-me o sentimento absurdo de um grito engasgado no abismo de meu coração. De meu passado, nada me interessa. De meu futuro, nada me espera. De um lado ao outro da seta do tempo, um vazio imenso se erige como um monolítico destino que me marca no ferro em brasa eternamente nesta angústia. Grávido de obras que nunca verão a luz do dia, só me resta a espera do raiar do sol sobre o impulso criador em mim. Minha fome e sede não tem a forma ou necessidade de comida e água, mas do mel de palavras que preencham no silêncio meu próprio silêncio. Nada me satisfaz, nada pode sufocar o desejo monstruoso que palpita em minha mente para sair, extravasar, explodir e, como uma estrela que morre, faz nascer de si novos mundos. Quero morrer e fazer de meu cadáver solo para nova vida, que minha carne sirva de adubo para a própria vida abundante e fértil. Que minha melancolia seja o ovo que choca a alegria de uma nova constelação. Que meu sofrimento forneça a fonte jorrante de sangue para o novo Éden. 

Devo primeiro me desfazer, destruir cada fibra a ponto de não sobrar nada de mim, nem mesmo nas palavras, onde cada palavra já não signifique algo de um eu, mas sim a destruição e destituição do meu próprio eu. Abandonar-se na beira da estrada, como o vagante que pede carona sem história, sem passado e sem nome. Seja meu destino encontrar o que nunca fui, o que nunca serei, pois o ser não é, o ser foi, passa e se esvai a cada instante. Não ter reservatório, bagagem ou memória. Desfazer-se de si, extirpar o corpo da corrente insalubre da saúde moral, e a mente da consciência reclusa. Cidadão do mundo não significa ser escravo de todos, nem mesmo escravo da própria vontade, mas sim fazer-se um com o mundo, um com o si do outro de modo que o “eu” e o “tu” se tornem indistinguíveis. 

Percorrendo cada recanto do mundo, experimentando cada possibilidade pelo simples efeito de uma fantasia. O fantástico está não em fazer material o absurdo, mas em fazer real o mais inconcebível no espírito, vivendo o momento fantástico sem que esse de fato se efetue. Essa é a beleza da fantasia, do infinito desdobrado sob os olhos de um deus. Todo artista, todo filósofo - em suma, todo criador - é o Deus de seu próprio mundo. E não seria, no entanto, cada um e cada qual o deus de seus próprios sonhos? Criando acordado as quimeras que povoam e sempre viriam a compor as fábulas e histórias de nossas vidas. A diferença entre o simples sonhador e o criador é que o segundo dá forma e matéria para suas mentiras pelo sopro da vida eterna que lhe concede a existência lírica, trágica de algo que possuí um sentido, ele cria um sentido para a mentira. O sonhador ingênuo, por outro lado, vive do sentido de um outro, do sentido dado por um terceiro e não é nunca o Deus de seus sonhos. 

Sejamos criadores, forjemos do barro um mundo monstruoso, pois todo criador deve temer sua obra, a obra deve, em algum momento, crescer, transmutar, dessignificar-se a tal ponto que o sentido dado, criado por seu deus - o autor - encontre na sua obra um ateísmo, uma iconoclastia para com o ideal erigido pelo criador. Que seja como o anjo caído criando em outro lugar seu paraíso perdido, que se afaste de seu mestre e que na boca de outro seja proferido com palavras mais bruscas, com palavras diferentes, com travestimentos e misturas alquímicas. Que cada átomo de si se metamorfoseie e não represente em nada mais o que um dia foi. Nisso pode-se dizer da obra como do autor, neste ponto já não se sabe quem fala, quem escuta, quem escreve. 

Mudar, transformar, fluir por cada fragmento, cada caco como uma peça de porcelana que se quebra e cujas partes dispersas são coladas com ouro. Que erro esse, unir o fatalmente destruído pelo mais nobre dos metais. O uma vez partido não deve ser novamente unido, nem mesmo recolhido. A cada quadrante aquilo que lhe cabe. A distância é também uma dádiva e uma virtude. A beleza do ouro se resguarda não em seu poder de reconciliação do fragmentado, mas em seu poder de se dobrar quando pressionado. O ouro é maleável, moldável nos mais básicos aspectos, isso faz dele o mais valioso dos metais. Contudo, mais valioso do que o ouro deve ser considerado o barro. O barro é a matéria prima do devir, é somente quando o barro é assado e transformado em cerâmica que ele se torna sinônimo de “ser”, caso contrário ele é o eterno fluir do mundo. 

Não há, nunca houve e nunca haverá “ser”, ser é uma palavra vazia que designa um estado fixo não localizável. A cada instante que se passa o ser já não é, o ser foi, o ser está nas memórias que se acumulam, mas ainda assim ele não subsiste, pois o que se conserva lembrando, passa, se esquece. O ser não persiste, o ser deixa de ser pelo mais básico movimento do mundo, pelo mais fundamental e natural princípio do universo que é o tempo. Só há vida porque há tempo, e se há tempo pode haver tudo. Não há, de todo modo, momentos em que o tempo para, em que o próprio correr da areia da eternidade desacelera e tende a correr - como que contra as próprias leis da física conhecidas pelo homem - ao contrário? 

Esses momentos nos são milagrosos, instantes em que tudo ou nada fazem sentido, geralmente os dois ao mesmo tempo e ambos se confundindo. Tudo faz sentido, a vida faz sentido, a alegria parece uma vez para todo sempre brilhar de um lado ao outro da história de nossa existência e como que do momento de nosso nascimento ao de nossa morte, inteiramente conectados por um extremamente tênue fio de destino a completude de nossas vidas se congrega, se concilia, em que um “foi” ressoa com um “vai ser” nesta linha indivisível e eterna que atravessa toda nossa vida mundana. E do destino de nossas vidas patéticas e pequenas nos vemos ao mesmo tempo ligados a um destino maior, o destino tenebrosamente titânico do próprio mundo que em seu umbigo engole, como um buraco negro que não deixa qualquer luz escapar de si, toda nossa trajetória, toda nossa pequena noveleta e cantiga de ninar para os anjos que chamamos de vida.

E como que se nossa vida fosse uma pequena, ínfima parcela de um céu estrelado infinito, somos levados por nossa insignificância a tomar conta do seguinte: essa pequena e opaca estrela que é nossa vida é, ainda assim, a mais brilhante, a mais calorosa e exuberante que existe pois é a única que somos capazes de vivenciar de fato, ao fundo, em suma. De cada estrela no céu se dirá que quando aparecem sozinhas no céu não fazem uma noite estrelada, mas juntas, a vista noturna se torna bela, digna de uma contemplação reflexiva. Cada vida, isolada, reclusa, não se sustenta absolutamente, é necessário, sobretudo, do brilhar e do ressoar de uns sobre outros. Da estrela solitária que aparece no céu o que se ressalta é que ela se destaca e brilha mais que as outras, isso é certo, não obstante ela, como qualquer estrela, é rodeada por outros astros que a veneram como a soberana de seu território cósmico.

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