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O Monstro Debaixo da Cama
Um
dia ouvi um barulho vindo de debaixo da minha cama durante a noite. Acordei de
um sono profundo, contudo, conturbado por pesadelos incômodos. Não me lembro exatamente
o que sonhei ou se de fato estava desperto no momento em que fui investigar o
som. Me debrucei para ver se havia ali alguma coisa, supondo ser um de meus
gatos. Mas o que encontrei foi a coisa mais perturbadora que eu poderia pensar
e nunca prever: eu mesmo, numa atmosfera envolta de sombras e convoluto em algo
que eu não poderia atribuir como algo de valor sensível. Se o pesadelo perdurou
naquele momento, acredito que aquele, de fato, era em si o pesadelo. E se há
nos contos de fadas infantis sempre algum tipo de pesadelo intrínseco no clima
inocente que lhe é readaptado para os dias de hoje, vejo que em nossas vidas há
esse tal pesadelo de um Eu sombrio que habita debaixo da cama como a sombra de
um inconsciente subjugado pela luz da razão e dos atos da sobriedade sã. Como
uma espécie de ludicidade primordial na criança que existe em nós e nos forma
antes de nos tornarmos adultos chatos e condescendentes com imposições morais e
legislativas da sociedade, no mesmo sentido que o Diabo tem a alcunha
popularizada de “mochila de criança”.
Eu
só sei que, quando vi eu mesmo consumido por uma treva profunda e, mais que
isso, rindo um riso histérico de onde vinha o som estranho que me acordou, eu
fitei diretamente nos olhos da coisa – falo coisa pois não ouso dizer que era
eu, como ninguém ousa dizer que sua parte mais oculta é algo de si, sua parte
mais denegada e eludida – era um olhar de maldade pura, um cristal que brilhava
naqueles olhos como um abismo sem fim, mas ao mesmo tempo da inocência mais
sincera, mais profunda, mais autêntica. Como era possível isso? Tamanho crueldade,
tamanho desejo de fazer sofrer, tamanha escuridão nas intenções, mas, como que
por um paradoxo infinito, não havia aquela velha “maldade” que o homem atribuí
às intenções do outro, como um simples fazer para prejudicar o outro com um
objetivo em mente, mas tão somente o desejo do mal despretensioso, o mal pelo
mal, para satisfazer tão somente o coração pulsante e desejante do mundo que
clama pela maldade sem motivo. Se há em toda e qualquer uma dessas histórias infantis
antigas alguma “moral da história” que os adultos gostam de estabelecer para as
crianças - e nós, homens racionais com medo de seus sonhos sombrios, desejamos
sempre extrair algum tipo de ensinamento destes sonhos - é que, em todo e
qualquer homem há essa maldade primitiva, esse impulso despretensioso para o “diabólico”.
E, como os contos de fada que colocam as crianças na linha, não serão os sonhos
modos em que o inconsciente tenta, de algum modo, estabelecer limites para a destruição
inerente à criança que permanece em nós? Não seremos nós mesmo nossos monstros
debaixo de nossas camas, como sombras de crianças que não praticaram
suficientemente suas crueldades de infância?
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