Pular para o conteúdo principal

Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

O pequeno grande erro


 O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, 1485-1486. 

Era uma bela noite. Jorravam sobre nossas cabeças estrelas cadentes como sonhos perdidos desfixados do céu eterno. Ao nosso redor, jovens apaixonados se beijavam acaloradamente. Se havia um destino, tudo indicava que aquele momento era sua confirmação absoluta. O tempo em si mesmo deixava de existir como fluxo corrente e parava sua circulação como um coração que para momentaneamente de bombear sangue. Sobretudo, seu olhar era a coisa mais bela que já havia visto em toda minha vida. Se havia uma explicação possivelmente lógica, obviamente não segundo leis cientificas, mas talvez de algum misticismo obscuro, era o de que o tempo parava pelo feitiço presente em seu olhar. Talvez como uma bruxa ou sereia, mas não no sentido negativo, tão somente na derradeira inclinação para fazer com que eu me entregasse totalmente, de corpo e alma, a algo que daquele momento em diante eu não sabia que futuramente iria me arrepender com todo o amargor. Não obstante, como se ela soubesse tudo o que se passava em minha mente, até mesmo aquilo que eu ignorava, ela me beijou. Foi de surpresa. Eu mais do que ninguém não esperava o beijo profundamente apaixonado que ela me daria naquela noite. Sobretudo, senti em mim algo mais profundo do que a imensidão do espaço ao redor. E tendo Deus e o universo como testemunha, declarei, através daquele ato de carinho e ternura, todo meu amor. Que erro, que imenso erro cometi. A cruel verdade é que não se ama uma mesma pessoa duas vezes na mesma vida, somente se finge amar novamente. Era, neste caso, a segunda vez que buscávamos uma reconciliação, no entanto, tudo no mundo já indicava o contrário para isso. Eu falei em destino? Sim, o destino nos levou até ali, mas não no sentido de que o que devia ser, será, mas do que deve ser, é. Ou seja, tudo deu errado no decorrer da noite. Ou, se levarmos em conta a própria causalidade, tudo deu extremamente certo.

Não se sabe, de fato, o que um ato ou acontecimento pode resultar quando não transcorre de fato o rumo da história. Estória, na verdade, pois não falamos aqui em termos atemporais de uma narrativa eterna, mas de um conto isolado de vidas mundanas e reclusas à sua pequenez cotidiana. Como uma parte, ainda assim, influenciamos no grande emaranhado do todo, mas por um fluir de ondas menores, como uma leve brisa que perde a força com o decorrer do tempo. É talvez curioso que nossas vidas tenham trazido tanta convergência para as linhas de existência entre as de tantas outras, fazendo com que alguns destinos verdadeiramente e necessariamente conectados se ligassem. As nossas, por outro lado, não estavam nos planos de qualquer entidade superior. Isso só denota o caráter essencialmente cômico do mundo. Se há um Deus ele é um escritor de peças tragicômicas, mas de modo algum isso é uma censura. Acredito, de fato, que isso seja mais bela virtude de Deus. Censurem-me o quanto quiserem os crentes fervorosos, mas creio eu que beleza inerente do mundo está em sua completa incoerência. Se eu tivesse finalmente me reconciliado com ela naquela noite não teria, no final das contas, encontrado o sentido oculto que existe para mim no transcurso momentâneo e flutuante desta vida que é o de narrar estas anedotas curiosas para vocês.

A paixão da vida de um homem nem sempre se encontra no amor de uma mulher, mas muitas vezes em sua atividade informal de prazer. Seja o prazer aquilo que lhe traz a alegria da vida no dia a dia, deve se ver nisso seu mais profundo sentimento de utilidade. Todo mundo deseja ser útil, e não se deve tomar isso apenas como um trabalho. O ser humano almeja, mais do que tudo, alçar com seus talentos algo que lhe dê prazer. De tal modo, a alegria é o sentimento mais banal que existe. Somente o ser humano conhece a alegria, o animal, por outro lado, reconhece somente estimulações nervosas - prazer físico - não há, de fato, alegria, pois a alegria é um estado de espírito. Isso seria afirmar que os outros animais não têm espírito? O que digo na verdade é que a alegria do ser humano provém de uma contemplação, coisa que os outros animais não são capazes. A contemplação provém de uma percepção do prazer físico e da satisfação psicológica deste prazer. Coincidindo ambos, se sobressaí um estado espirituoso de alegria. No entanto, a alegria não é constante, por exemplo no caso da felicidade. A felicidade é uma utopia. O movimento constante do mundo, o princípio do devir nega veementemente a capacidade da existência de uma fixidez da alegria como estado contínuo de sensação. Pois mesmo que o ser humano conseguisse obter uma durabilidade da sensação de alegria, o princípio do movimento o levaria a se aborrecer com a própria alegria, levando-o, por necessidades fisiológicas e psicológicas, a buscar um desequilíbrio desta alegria, de tal modo indo de encontro a artimanhas como auto infringir dor a si mesmo em vias de obter prazer. O prazer, neste caso, não é necessariamente ligado somente à alegria. Talvez o prazer seja um fenômeno muito mais complexo e digno de nota do que a alegria, pois ele leva em conta tanto o sofrimento como a alegria.

Seja nesses termos conceituais que muito pouco interessam ao homem apaixonado pois este - no estado da embriaguez romântica - não racionaliza o “o que” nem o “por que” das coisas, tão somente se entrega ao fogo abundante de suas consequências delirantes. Assim, como um condenado ao cadafalso sem medo algum do julgamento de Deus, me entreguei de corpo e alma ao totem de minha adoração sobrenatural no colo desta criatura que de mim escapava toda percepção puramente empírica dos sentidos, e como que Adão levado por sua Eva ou - mais profundamente - tentado pela serpente na forma do primeiro amor do homem ancestral, como uma Lilith que com sua astúcia me levava a comer do fruto de um conhecimento que eu há muito já havia provado, me entrego novamente aos seus carinhos e seu amor, pecando contra Deus e o mundo, contra meu próprio orgulho e minha própria vontade, restando tão somente a vontade do fundo do abismo de me ligar uma vez mais e para sempre com a dela, num amor negado, eludido e asfixiado pelos instintos de preservação da minha solidão mas ao mesmo tempo tão compelido e atraído para si como um astro eternamente orbitando ao redor de uma estrela. Tudo em nome deste pequeno erro chamado "prazer". 

Comentários

Postagens mais visitadas