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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

Os Mistérios de Dioniso


Triunfo de Baco e Ariadne de Annibale Carracci, 1597.

De supetão ela veio, com estrondosa festa interna dos sentidos e dos sentimentos, como numa nova aurora que nasce após longa noite escura e dolorosa. Não sem anúncio, pois a própria noite escura já prenuncia o novo dia claro de novas esperanças e perspectivas. E assim, de modo a lembrar o abraço caloroso de um velho amigo que se reencontra após longa despedida, me reconcilio com a tenra e doce alegria, a profunda necessidade de vida que há em minhas entranhas, a instintiva força de afirmação da dura - porém agora agradável ao sabor do meu paladar - tragédia cômica que se chama mundo. Não choro mais, não lamento nem lamurio como há alguns dias fazia, para o bem de minha saúde, somente rio com riso cortante, capaz de cindir toda corrente aprisionadora de melancolia e angústia, de romper com o cárcere do abismo do desespero. Foi necessário perecer, da dor, para parir-me de mim mesmo, como fênix renascida das cinzas ao qual se consome no próprio fogo.

A angústia é combustível para o fogo da dor que queima o espírito, e somente do espírito que arde, pode este mesmo espírito se purificar e purgar o mal que há em si, surgir outro, sempre outro, desperdiçar o dispensável e devir diferente de si. Da angústia em combustão surge necessariamente uma exultação exuberante de alegria, jovialidade, vitalidade, um fogo ainda mais vívido que queima lentamente e consome a lenha da angústia como propulsora de potência de vida, de força, de esperança, de felicidade renovada. Ciclo constante e fundamental do que se chama vida, de se destruir e se recriar. É sempre preciso morrer em etapas para fazer nascer mais do que o homem do próprio homem.

Assim, pouco a pouco, o ser se afasta dos escombros de uma edificação que entoa um canto fúnebre, como o próprio réquiem do desejo e, conforme a vista se clareia do imenso incêndio de um mundo já extinto, o horizonte se abre nos contornos do sentido de um novo vigor. Expresso sobretudo por um imenso magnetismo sexual - não pela carne - mas por uma criatividade e poder narcísicos - mais profundos do que sujeitados à feição ou o pensamento - de um cultivo de si, de um semear de alegria intensos. Uma vontade profana pelos mistérios ocultos da vida em todos seus aspectos sinistros – não no caráter de uma negatividade, mas sim de um pacto proibido – dos prazeres mais fundamentais e inerentes à essência do coração pulsante que bombeia energia para todos os membros dispersos que agem como que impelidos por uma força sobrenatural de poder indecifrável, provindos dos mais impenetráveis recônditos do homem.

E mesmo o vinagre agora me é doce como vinho, e ao virar a taça do líquido límpido do elixir da vida, torno meu ato uma ode de adoração ao deus que habita em mim e no mundo como uma coisa só, cujos cornos expressam a transitoriedade constante do sentimento bom e ruim que desagua sempre no mesmo rio da vida, que dança como sátiro selvagem na congregação de adeptos de um enigma reservado a poucos, escolhidos a dedo por aquele grande poder chamado Destino o qual num mesmo muro de tijolos constrói, como um grande castelo de cartas as peças da totalidade e os interliga sem contradição – sendo sua única contradição o seu próprio ser enquanto agir, se diferenciar e se mover.

É a esse poder que consagro, não minhas preces - pois este poder não requer devoção ou aquela perigosa e perniciosa palavrinha “amém” – mas sim minha vontade de criar, destruir, afirmar e expandir todo o possível em impossível e para além do impossível. Que me faz almejar as estrelas e as nebulosas brilhantes de anjos de novos pensamentos; e os buracos negros onde se encerram os profundos abismos de demônios do inconsciente. Desejo absurdo de passear despretensiosamente por todos os prados e campos do mundo, coletando tudo o que posso ao cruzar as quatro estações e, com isso,  moldar eu mesmo meu palácio de cristal a partir de um milagre insensato que faz surgir do barro imundo e, pela pressão de minha vontade absoluta, consumar-se no mais duro e resistente diamante de vida.

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