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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

A Busca pela Solidão

O Holandês Voador de William D. Higginson 


Me encontro em um campo aberto rodeado de montanhas. Grama verde até onde a vista alcança, e o infinito mar adiante após o extremo da visão. Penso estar só, mas me acompanha um cão, um labrador de pelagem volumosa que caminha a minha frente mantendo certa distância. Me visto com um sobretudo preto longo e ando a passo lento, apreciando o som do vento e o sol da manhã. Como se a vida valesse a pena neste caminhar constante em direção ao nada, sem objetivo ou destino qualquer, sinto certa melancolia mesmo no sentido do simples ato despretensioso de perambular pelo campo com pensamentos divagantes. A companhia do cachorro reflete minha solidão numa animalidade solitária, de modo que somente como animal eu seria tão solitário. E mesmo o cão - o animal mais companheiro - sente em si sua própria solitude quando necessária, no percurso que faz por si ou com um outro ao lado. Assim eu, como o cão, sigo tão somente o instinto que me guia a um caminho secreto que sinto - mas que não me é revelado - obscurecido pelo pensamento mundano que hora ou outra desencobre o destino oculto desse fim eludido por mim mesmo.

 Neste ponto, chego ao limiar do descampado que se encerra num imenso abismo em direção ao mar. Ao longe, na vista, um navio com velas negras se anuncia sob o brilho do nascer do Sol. Ao olhar ao redor, encontro uma escadaria de pedra talhada na montanha que desce até um pequeno porto de madeira o qual aguarda tanto a mim quanto ao navio. Eu e meu companheiro canino passamos a descer as escadas calma e lentamente apreciando a visão única, como de um sonho, da descida rumo ao submundo. Ao chegar à base da escadaria de pedra, já vejo o navio atracado no porto, contudo com as velas ainda içadas, pois a estadia será apenas para que eu embarque. Não há tripulação alguma, nem mesmo capitão. Ao pisar no degrau de madeira do porto, o cão começa a latir, como um misto de assombro pelo que me aguarda a partir dali e uma despedida, pois não me seguirá dali em diante. Minha solidão animal se desfaz e se torna solidão naval, solidão absoluta no mar da eternidade profunda na qual ei de mergulhar agora. Deixo de ser um como o animal e me torno um como o espírito, um espectro que ronda os oceanos.

 Meu grande medo ao embarcar o navio era o de, exatamente, confrontar-me com espectros e monstros marítimos. Mas coube que a mim foi designado o papel de sombra vagante, cujo barco era tragado para um negrume tempestuoso de nuvens, objeto de meu receio infatigável. No olho desse furacão o qual, paradoxalmente era uma calmaria completa, meu barco navegava através de um cemitério de carcaças de outras embarcações que um dia carregaram histórias naqueles recantos do mar. Neste ponto, eu tive certeza de que eu não era o vivo da história, muito menos o morto, mas sim o fantasma, uma espécie de Holandês Voador, condenado a vagar eternamente só, sem tripulação ou mesmo vida ao redor. Neste deserto de solidão, eu encontrava apenas as memórias do meu passado emanando como espíritos zombeteiros da minha própria consciência, os arrependimentos e frustrações impregnados em mim como o sal da água do mar que gruda na pele após o mais breve mergulho.

 Mas foi somente após enfrentar todos esses demônios invisíveis de mim mesmo e, pela minha vontade tomando o leme com mão forte, que passei a guiar o navio para fora daquela devastação fria, sombria e triste em direção à luminosidade brilhante de um novo mundo cheio de vida. Como um oásis de terra no meio do deserto de água, se prostava diante de mim uma ilha paradisíaca com enormes cachoeiras que caiam como se fosse prata derretida, cujas copas das árvores se elevavam até o mais longínquo limiar observável e com uma suntuosa praia onde a areia brilhava como se fosse um dourado reluzente, tendo um enorme - porém tranquilo - vulcão emanando do meio de si. Enquanto guiava meu barco até lá, minha solidão era agora acompanhada pelos mais diversos animais marinhos que saltavam da água e rodopiavam ao meu redor como que inclinados a me cumprimentar em minha jornada. Me sentia prenhe de alegria, uma alegria de uma solidão compartilhada, não com a solidão de um eu refletido num espírito animal tornado melancólico, nem mesmo a solidão espectralizada e dividida em diversos fantasmas de mim, mas uma solidão compartilhada com a própria solidão da natureza, a solidão pulsante de excesso de vida e de povoamento. Uma solidão em que o estar só não faz sentir estar só. Mas ainda assim algo faltava nessa solidão...

 Quando não havia como aproximar mais o navio da ilha, retirei o grosso casaco e os sapatos e pulei na água, nadando em direção à praia. O calor da areia ao tocar meus pés me aconchegou, e senti, pela primeira vez em muito tempo, uma alegria que eu não sabia que era possível ainda existir. Caminhei a esmo pela praia procurando o que fazer ou o que buscar até, em certo ponto, encontrar uma caverna. Adentrei na profundeza escura desta e por lá me deparei com esqueletos de exploradores ao redor de tesouros perdidos. Nada toquei, pois, nada desejava dali. Meu desejo - pois de fato havia um desejo que eu não sabia explicar – me guiava mais adiante. Entre os mortos, senti que a solidão da morte era a mais confortável, a mais desejável pelos modestos, uma solidão tranquila. Não era a solidão que eu buscava. Era uma solidão que finda tudo, de fácil acesso.

 Foi somente indo adiante que encontrei uma fonte termal aquecida pelo vulcão no centro pulsante da própria ilha. Ali, naquele fervilhar eu senti meu desejo incitar-me mais profundamente do que nunca, como uma voz no meu ouvido dizendo “mergulha!”. De pronto, me despi completamente e me atirei lá dentro. A água incandescente queimava minha pele, me sentia como em carne viva, mas também em desejo vivo. Um misto de potência erótica com sabedoria pulsante. Senti minha vontade refluir sobre si mesma pelo calor e retornar cada vez mais incandescente pelo bombear de sangue que meu coração fazia correr pelas minhas veias. Esse desejo em mim me dizia para ir mais fundo naquela fonte, em direção ao que era a entrada do próprio vulcão. Nadei, nadei cada vez mais fundo não em direção à escuridão, mas sim a uma chama escarlate de pura energia que rompia as camadas de terra e conectava com a água onde estava. Meti minhas mãos na rachadura de lava brilhante e abri com toda a força. Ali, somente ali, eu senti minha verdadeira solidão. Minha solidão no abismo da minha vontade de atingir o cume, de romper com todas os estratos e atingir o centro furioso da Terra, solidão essa que, pelo contato de meu frágil corpo de carne com o fogo do mundo, me desmancha, me desfaz, e me faz um com a Terra, cujo vulcão me engole e me torna parte de si ao me consumir. Pela minha vontade de destruir a mim mesmo, mas como condição de renascer do coração da Terra, e que minha essência seja exprimida em cada erupção do vulcão, como se minha vontade fizesse com que este vulcão cuspisse de si eu mesmo e moldasse uma ilha cada vez maior e mais bela. A solidão que eu buscava era a solidão do fogo da criação, a solidão da mais pura liberdade formadora... 

 

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