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O Pagão e o Cristão
Passei
a tarde trabalhando em algumas operações mágicas. Realizei uma ritualização sigílica
- pouco importa qual era a intenção do sigilo, dado a eficiência das operações
anteriores – mas sim sua funcionalidade, de fato. Desenhei o sigilo como um
agregado das letras de meu desejo num símbolo não representativo desse desejo,
tão somente como um signo que expressasse a potência subconsciente dele. Reorganizei
as letras na forma de um mantra a fim de harmonizar a sonorização da operação
do ritual e, enquanto fazia isso, buscava me desprender do próprio desejo da coisa
para que seu efeito fosse eficiente. Treinei o desenho do sigilo várias vezes
enquanto entoava o mantra e uma vez decorado, rasguei o pedaço de papel em que
se encontrava o desenho, acendi um cigarro, dei um gole na minha bebida e um
longo trago neste cigarro como modo de condensar minha vontade. Baforei a
fumaça no sigilo e queimei-o com o isqueiro. Deixei para que o destino – ou qualquer
coisa que fosse que tem a jurisprudência dessas coisas – se encarregasse do
resto.
Resolvi
dar uma volta para refrescar a cabeça. No decorrer de meu trajeto me deparei
com uma pequena igreja de bairro. Pensei “por que não entrar?” Resolvi testar a
tese de que os hereges pegam fogo ao pisar dentro da igreja. Para minha
decepção, não ardi em chamas, mas uma coisa curiosa aconteceu: comecei a sentir
coceira. Seria isso um tipo de castigo divino pela minha profanação dos poderes
ocultos do divino para meu bel prazer? Na verdade, tendo a acreditar mais que
era pela mudança na atmosfera: do lado de fora, uma praça fresca cheia de árvores,
agradável e cheia de vida; lá dentro, um ambiente inóspito, vazio, quente que
me trazia uma sensação de desconforto. Permaneci sentado por um tempo no último
banco da igreja refletindo. Tantas imagens sacras, tantos ornamentos e adereços
para um deus morto, um verdadeiro mausoléu! O que sempre me fascinou nas igrejas
era aquele pequeno assento na base dos bancos para se ajoelhar. Uma perfeição da
engenharia católica. A obrigatoriedade de se prostrar para seu senhor e lhe pedir
perdão, como se você fosse culpado do que quer que seja, mesmo que você não
seja culpado de nada. Uma necessidade de submissão ao pastor do rebanho, sendo
este Deus, e você apenas um cordeirinho inocente, sem ter direito algum de
saber o que ele sabe, o direito de guiar sua própria coleira, como um
cachorrinho que precisa de um mestre e se perde facilmente se não estiver com a
guia bem firme na mão do dono. Que coisa mais patética!
O
cristão é um sujeitinho muito peculiar. Devota sua vontade à vontade de um cadáver.
A maior ilusão cristã – e consequentemente o maior atentado contra a vida pulsante
de verdadeira vida – é a crença que seu Jesus, sacrificado, pôde ter trazido algum
tipo de ensinamento depois da morte. Essa é a verdadeira blasfêmia, a
verdadeira heresia. Heresia contra a vida e a morte, contra a natureza. Não,
crente, Jesus não transcendeu o abismo da vida e da morte, ele não superou a
dualidade essencial da existência, essa foi a grande mentira inventada para que
você, crente, acreditasse que há algo mais que essa vida que você tem. Essa
vida, essa dádiva amaldiçoada pelo cristão em nome da vida após a morte,
permanece sendo a única tangibilidade que tanto o cristão como qualquer um irá
ter acesso. Esse zumbi que vocês cultuam nada mais é do que um lembrete da
morte e da Ideia de vazio que existe para além da morte. Contudo, mais peculiar
que isso no cristão é sua hipocrisia, sua necessidade de julgar o sujeito comum
- o não-cristão, o pagão - como um negador da vida verdadeira. Devemos nós ter
um certo tipo de condescendência com o cristão: ele não é hipócrita, apenas
tolo, ignorante ou mesmo iludido.
Completamente
incomodado com o ambiente mortuário com o qual me encontrava, vislumbrando a
imagem do sujeito Jesus Cristo a minha frente, pregado como um inocente que se
torna culpado pelo próprio sacrifício a partir dos atos de seus seguidores em divinizá-lo
– pois qual o pecado maior do inocente sacrificado senão ser tornado Deus na
morte? – resolvi sair da pequena igreja para aliviar aquela coceirinha que já
começava a se impregnar meus ossos. Não seria isso uma maldição do Deus Pai
sobre a não retidão do filho do Filho? Uma inserção defeituosa intencional no
projeto da cópia de sua cópia? Ou, em termos platônicos, nós como um simulacro do
Cristo que é a emanação do Uno Divino? Enfim, o pecado em nós insere a culpa, e
a culpa – se podemos considerar essa palavrinha perniciosa – traz consequências
psicológicas como a coceira ao entrar na Igreja. Pois, como um passe de mágica,
ao pisar o pé fora daquele domínio que não era meu, nem do meu deus – pois o
deus que cultuo estava lá fora – a coceira se dissipou e logo me pus a caminhar
em direção a um banco com uma mesa em frente à Igreja.
De
costas para aquele templo que para mim simbolizava a morte, acendi um cigarro e
senti a brisa fresca de um tempo nublado, porém com um Sol brilhante escondido
por de trás das nuvens que fazia ressoar um belo dia. Ali fora, percebi o claro
contraste daquele túmulo cadavérico do cristianismo com a energia alegre de crianças
brincando e pessoas alegremente passeando na praça sem a necessidade de devoção
alguma. Mais uma vez a hipocrisia cristã! Todas aquelas pessoas, certamente,
eram devotas da Igreja, contudo somente a frequentavam por obediência ou
tradição nos dias estabelecidos. Já havia ido em muitas das missas católicas e
nunca vislumbrei um rosto de alegria ou sorriso, somente semblantes sérios. O
que o cristianismo tem contra a alegria? Um certo ardor pela sobriedade, pela altivez,
como se fosse houvesse uma necessária arrogância no seu proselitismo em ser
correto, justo, não-desviado do caminho reto. Que falta de vivência! Que falta de
experiência, de prazer no erotismo, na embriaguez, na devassidão, falta completa
de se imiscuir com o povo e com o mundo! O cristão julga conhecer tudo - e por
esse mesmo motivo juga tudo – mas ele é o sujeito que menos conhece do mundo,
pois se abstém e abnega de todos os deleites possíveis que o mundo tem para
oferecer.
Neste ponto, tragando meu cigarro e apreciando a vista do céu, passei a me esquecer da imagem do cristão e somente considerar a imagem positiva que me vinha a mente do que me era agradável. Não queria nada mais do que aquele breve momento do vento tocando minha pele, da fumaça adentrando meus pulmões e a nicotina fazendo efeito em meu sistema nervoso e acalmando meus sentidos. Era o ápice de prazer e alegria que sentida naquele dia e na eternidade daquele momento. Tudo valia a pena no instante que justificava toda minha vida. Um prazer mundano, o som das crianças brincando, o Sol encoberto com pequenos raios de luz saindo por entre as nuvens e iluminando meu rosto como se eu fosse o próprio deus encarnado na Terra. Era o instante pontual que fundamentava toda a existência, e o ponto central de tudo isso: todos os instantes carregavam essa mesma potência e importância. Não uma promessa de uma vida para além da vida, não a necessidade de redenção de todos os meus atos no sacrifício de um deus - pois cada momento da minha vida redimia cada ato pelo gozo atemporal do instante que condensava, como uma cadeia inquebrável de eventos, todos os atos e eventos uns aos outros até aquele momento singular e extraordinário. A vida valia a pena, como cada instante da vida sempre valeu e fez valer até ali. A vida não era o funeral de um deus, mas uma constante afirmação e reafirmação do Deus que existia em mim e que emanava através do céu, das árvores, da fumaça do meu cigarro e das pessoas ao meu redor. Esse era o meu deus: não um deus de morte, mas um deus de pura expressão de vida.
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