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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

O Pagão e o Cristão


Cristo Crucificado de Diego Velazquez, 1632

Passei a tarde trabalhando em algumas operações mágicas. Realizei uma ritualização sigílica - pouco importa qual era a intenção do sigilo, dado a eficiência das operações anteriores – mas sim sua funcionalidade, de fato. Desenhei o sigilo como um agregado das letras de meu desejo num símbolo não representativo desse desejo, tão somente como um signo que expressasse a potência subconsciente dele. Reorganizei as letras na forma de um mantra a fim de harmonizar a sonorização da operação do ritual e, enquanto fazia isso, buscava me desprender do próprio desejo da coisa para que seu efeito fosse eficiente. Treinei o desenho do sigilo várias vezes enquanto entoava o mantra e uma vez decorado, rasguei o pedaço de papel em que se encontrava o desenho, acendi um cigarro, dei um gole na minha bebida e um longo trago neste cigarro como modo de condensar minha vontade. Baforei a fumaça no sigilo e queimei-o com o isqueiro. Deixei para que o destino – ou qualquer coisa que fosse que tem a jurisprudência dessas coisas – se encarregasse do resto.

Resolvi dar uma volta para refrescar a cabeça. No decorrer de meu trajeto me deparei com uma pequena igreja de bairro. Pensei “por que não entrar?” Resolvi testar a tese de que os hereges pegam fogo ao pisar dentro da igreja. Para minha decepção, não ardi em chamas, mas uma coisa curiosa aconteceu: comecei a sentir coceira. Seria isso um tipo de castigo divino pela minha profanação dos poderes ocultos do divino para meu bel prazer? Na verdade, tendo a acreditar mais que era pela mudança na atmosfera: do lado de fora, uma praça fresca cheia de árvores, agradável e cheia de vida; lá dentro, um ambiente inóspito, vazio, quente que me trazia uma sensação de desconforto. Permaneci sentado por um tempo no último banco da igreja refletindo. Tantas imagens sacras, tantos ornamentos e adereços para um deus morto, um verdadeiro mausoléu! O que sempre me fascinou nas igrejas era aquele pequeno assento na base dos bancos para se ajoelhar. Uma perfeição da engenharia católica. A obrigatoriedade de se prostrar para seu senhor e lhe pedir perdão, como se você fosse culpado do que quer que seja, mesmo que você não seja culpado de nada. Uma necessidade de submissão ao pastor do rebanho, sendo este Deus, e você apenas um cordeirinho inocente, sem ter direito algum de saber o que ele sabe, o direito de guiar sua própria coleira, como um cachorrinho que precisa de um mestre e se perde facilmente se não estiver com a guia bem firme na mão do dono. Que coisa mais patética!

O cristão é um sujeitinho muito peculiar. Devota sua vontade à vontade de um cadáver. A maior ilusão cristã – e consequentemente o maior atentado contra a vida pulsante de verdadeira vida – é a crença que seu Jesus, sacrificado, pôde ter trazido algum tipo de ensinamento depois da morte. Essa é a verdadeira blasfêmia, a verdadeira heresia. Heresia contra a vida e a morte, contra a natureza. Não, crente, Jesus não transcendeu o abismo da vida e da morte, ele não superou a dualidade essencial da existência, essa foi a grande mentira inventada para que você, crente, acreditasse que há algo mais que essa vida que você tem. Essa vida, essa dádiva amaldiçoada pelo cristão em nome da vida após a morte, permanece sendo a única tangibilidade que tanto o cristão como qualquer um irá ter acesso. Esse zumbi que vocês cultuam nada mais é do que um lembrete da morte e da Ideia de vazio que existe para além da morte. Contudo, mais peculiar que isso no cristão é sua hipocrisia, sua necessidade de julgar o sujeito comum - o não-cristão, o pagão - como um negador da vida verdadeira. Devemos nós ter um certo tipo de condescendência com o cristão: ele não é hipócrita, apenas tolo, ignorante ou mesmo iludido.

Completamente incomodado com o ambiente mortuário com o qual me encontrava, vislumbrando a imagem do sujeito Jesus Cristo a minha frente, pregado como um inocente que se torna culpado pelo próprio sacrifício a partir dos atos de seus seguidores em divinizá-lo – pois qual o pecado maior do inocente sacrificado senão ser tornado Deus na morte? – resolvi sair da pequena igreja para aliviar aquela coceirinha que já começava a se impregnar meus ossos. Não seria isso uma maldição do Deus Pai sobre a não retidão do filho do Filho? Uma inserção defeituosa intencional no projeto da cópia de sua cópia? Ou, em termos platônicos, nós como um simulacro do Cristo que é a emanação do Uno Divino? Enfim, o pecado em nós insere a culpa, e a culpa – se podemos considerar essa palavrinha perniciosa – traz consequências psicológicas como a coceira ao entrar na Igreja. Pois, como um passe de mágica, ao pisar o pé fora daquele domínio que não era meu, nem do meu deus – pois o deus que cultuo estava lá fora – a coceira se dissipou e logo me pus a caminhar em direção a um banco com uma mesa em frente à Igreja.

De costas para aquele templo que para mim simbolizava a morte, acendi um cigarro e senti a brisa fresca de um tempo nublado, porém com um Sol brilhante escondido por de trás das nuvens que fazia ressoar um belo dia. Ali fora, percebi o claro contraste daquele túmulo cadavérico do cristianismo com a energia alegre de crianças brincando e pessoas alegremente passeando na praça sem a necessidade de devoção alguma. Mais uma vez a hipocrisia cristã! Todas aquelas pessoas, certamente, eram devotas da Igreja, contudo somente a frequentavam por obediência ou tradição nos dias estabelecidos. Já havia ido em muitas das missas católicas e nunca vislumbrei um rosto de alegria ou sorriso, somente semblantes sérios. O que o cristianismo tem contra a alegria? Um certo ardor pela sobriedade, pela altivez, como se fosse houvesse uma necessária arrogância no seu proselitismo em ser correto, justo, não-desviado do caminho reto. Que falta de vivência! Que falta de experiência, de prazer no erotismo, na embriaguez, na devassidão, falta completa de se imiscuir com o povo e com o mundo! O cristão julga conhecer tudo - e por esse mesmo motivo juga tudo – mas ele é o sujeito que menos conhece do mundo, pois se abstém e abnega de todos os deleites possíveis que o mundo tem para oferecer.

Neste ponto, tragando meu cigarro e apreciando a vista do céu, passei a me esquecer da imagem do cristão e somente considerar a imagem positiva que me vinha a mente do que me era agradável. Não queria nada mais do que aquele breve momento do vento tocando minha pele, da fumaça adentrando meus pulmões e a nicotina fazendo efeito em meu sistema nervoso e acalmando meus sentidos. Era o ápice de prazer e alegria que sentida naquele dia e na eternidade daquele momento. Tudo valia a pena no instante que justificava toda minha vida. Um prazer mundano, o som das crianças brincando, o Sol encoberto com pequenos raios de luz saindo por entre as nuvens e iluminando meu rosto como se eu fosse o próprio deus encarnado na Terra. Era o instante pontual que fundamentava toda a existência, e o ponto central de tudo isso: todos os instantes carregavam essa mesma potência e importância. Não uma promessa de uma vida para além da vida, não a necessidade de redenção de todos os meus atos no sacrifício de um deus - pois cada momento da minha vida redimia cada ato pelo gozo atemporal do instante que condensava, como uma cadeia inquebrável de eventos, todos os atos e eventos uns aos outros até aquele momento singular e extraordinário. A vida valia a pena, como cada instante da vida sempre valeu e fez valer até ali. A vida não era o funeral de um deus, mas uma constante afirmação e reafirmação do Deus que existia em mim e que emanava através do céu, das árvores, da fumaça do meu cigarro e das pessoas ao meu redor. Esse era o meu deus: não um deus de morte, mas um deus de pura expressão de vida.

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