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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

O Cruzamento do Abismo


A Árvore da Vida e da Morte por Timo Ketola 

Como exprimir o inexprimível? Eis o desafio maior de quem escreve, principalmente de quem escreve e já se aventurou em algum tipo de desbravamento interior do que há de mais obscuro, negro e soturno no homem. Não tem coisa mais incômoda do que querer dizer algo e não encontrar palavras, maldita pedra no sapado do poeta e literato. As mosquinhas do demônio zumbem em nossos ouvidos dizendo tal e tal palavra, mas você sabe que nenhum desses insetos zunindo fala com a voz do deus que há em você. E que deus é esse? Um deus do desconhecido, assustador, terrível forma de olhos esbugalhados no fundo do abismo que te fita como o mais frio observador, fazendo passar pelos seus olhos tão somente as sementes da tragédia. Não a tragédia no sentido positivo, afirmativo e vivaz, mas tão somente aquela grotesca torrente de imagens que escapa qualquer definição, que violenta a própria noção de violência. Você olha para o outro lado, tentando romper o contato visual, com aqueles olhos que veem tudo, todo erro, todo medo, todo pensamento que você algum dia já teve inadvertidamente e que se esquivou por uma fração de segundos. Ele não te julga, como o olho flutuante do deus da moral, do deus dos outros, mas te analisa, te percebe, te vê, com um par sinistro de olhos que nada pode se esconder. Ele é você, e o outro, ele é um vazio estranho que se assenta na tua alma. Um negrume pululante de negação a todo princípio de qualquer Idealidade.

Veias rasgadas revestem um crânio aberto em que se expande cada vez mais a massa encefálica do grotesco. Tentar fugir só vai adiar o confronto derradeiro, de si para consigo, do Eu com o que esvai todo Eu, escapa de toda determinação contígua de forma. E mesmo que essa forma cerebral desumana se insinua, é por mero capricho da imaginação tão suscetível aos incontáveis horrores projetados pela insidiosa razão em tudo querer ordenar de tal ou tal modo. O que escapa do reconhecimento é sempre um algo mais, mais sombrio, mais negro, mais fúnebre, cuja morte de si mesmo deve instintivamente o homem percorrer. E como em pesadelos há muito esquecidos, de um tempo além do tempo, tempo esse em que o homem se vê como simples feto no útero, essa figura adentra o campo como se esse mesmo feto de homem que somos antes de tudo, sistematicamente rompendo todos os vasos de sangue que se conectam a fim de nutrir o homem larval na forma de seu próprio aborto de si mesmo. Escorrendo uma torrente de sangue viscoso e negro do fundo do coração selvagem do homem por sobre sua alma direto para a lama. Um pântano de ervas daninhas faz nascer e florescer nesse terreno baldio de si mesmo, como o mais absoluto reduto de pequenas gárgulas travessas, avessas a toda certeza, toda exatidão do pensamento. Subsiste tão somente um sentimento de impotência nesse inferno, não de fogo, mas não deixando de ser tortura. Pois o inferno, se é que há tal coisa, é a alma escura do homem à plena luz do diabo pentelho que zomba de você dizendo que não se é capaz de fugir ou esquivar, que não há outra trilha a tomar do que aquela que leva ao fundo do oceano profundo em que naufragam todos os barcos da esperança. A correnteza segue seu fluxo, de modo que do dia à noite se faz num instante, e aquele fino fio de Ariadne que liga o resquício de sanidade à boca do poço lá em cima é rompido.

Vê-se uma árvore gigantesca, invertida, de ponta cabeça, cujas raízes se mesclam com as nuvens lá no céu. Um púrpura hipnotizante e um odor nauseabundo de morte recobre todo o horizonte. A única escapatória é se entregar, e morrer naquele lugar, se tornar uma carcaça, um casco, um vaso rompido, para surgir novo, renascido como fruto nos galhos secos e profundos dessa árvore sinistra. Tudo o que fala através de ti nesse momento é o próprio mal, não aquele ingênuo e culpável mal humano, mas um certo mal estranho, estrangeiro em nosso mundo, o forasteiro de um lugar escuso, negro como o mais obtuso cristal de obsidiana vulcânica, mas que brilha com brilho intenso, um brilho que não exala luz, mas tão somente mais e mais escuridão. E dessa escuridão, um eclipse se sobrepõe ao Sol regente e tinge a Terra inteira com treva como se fosse piche. É insensato olhar para o outro lado, não se entregar, se ocultar. Só resta aceitar o destino: você foi escolhido para transmitir uma mensagem, uma prece, um grito de guerra. Você assinou um contrato antes mesmo de saber quando, como ou por quê. Sua alma é agora entregue totalmente a uma nova determinação: não há determinação alguma, tudo é possível, tudo é desejável, tudo é factível. Todo um novo mundo de infinito se torna possível, um mundo em que só há simulacros e mentiras, pois o divino espírito santo do deus da moral se assenta na verdade, no imutável. Agora o caminho é aberto para rasgar aquela pretensiosa constituição denominada tábua sagrada de leis.

O dia se torna noite, a flores novamente exalam seu aroma noctívago, os malditos dançam, os cascos dos bodes cantam, os sacrifícios são executados em honra ao grande dragão. Crepúsculo do sacro, do eterno, do belo. Pusemos fim, enfim, ao reino do infindável. Os olhos da escuridão postos em você se erguem, o orgulho desta coisa é seu próprio orgulho. Você se exalta, infla, se eleva. As resistências da escuridão são vencidas por elas mesmas, se entregando a elas, se consumindo a partir delas. O Sol se esconde de vergonha, só há a Lua cheia no céu, essa mesma Lua que te guiou todo o caminho com uma luz pálida nos becos suicidas e esquecidos de Deus. Você é algo mais do que era no início, um quê de metamorfose que só a sombra pode conceber. Deus não sabe nada sobre a dor, a vida, o sofrimento ou a vitória. É o caminho alternativo, a via esquerda da estrada, sinistra, tão constantemente maldita que constitui a superação. Só há liberdade cruzando esse Rubicão, mergulhando no mais frio dos rios. Só há certeza pela dúvida, só conquista pela angústia, só há libertação pela servidão. O pesar lúgubre abre os caminhos da vida leve, o ar rarefeito dos cumes desentope as vias aéreas, respira-se com ar renovado. O sofrimento torna duro, como um diamante, que brilha com uma luz negra própria, sem nunca refletir nada. Autônomo, independente, o mal se sustém como força que mata para fazer viver. 

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