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O Cruzamento do Abismo
Como exprimir o inexprimível? Eis o desafio maior de quem escreve,
principalmente de quem escreve e já se aventurou em algum tipo de desbravamento
interior do que há de mais obscuro, negro e soturno no homem. Não tem coisa
mais incômoda do que querer dizer algo e não encontrar palavras, maldita pedra
no sapado do poeta e literato. As mosquinhas do demônio zumbem em nossos
ouvidos dizendo tal e tal palavra, mas você sabe que nenhum desses insetos
zunindo fala com a voz do deus que há em você. E que deus é esse? Um deus do
desconhecido, assustador, terrível forma de olhos esbugalhados no fundo do
abismo que te fita como o mais frio observador, fazendo passar pelos seus olhos
tão somente as sementes da tragédia. Não a tragédia no sentido positivo,
afirmativo e vivaz, mas tão somente aquela grotesca torrente de imagens que
escapa qualquer definição, que violenta a própria noção de violência. Você olha
para o outro lado, tentando romper o contato visual, com aqueles olhos que veem
tudo, todo erro, todo medo, todo pensamento que você algum dia já teve
inadvertidamente e que se esquivou por uma fração de segundos. Ele não te
julga, como o olho flutuante do deus da moral, do deus dos outros, mas te
analisa, te percebe, te vê, com um par sinistro de olhos que nada pode se
esconder. Ele é você, e o outro, ele é um vazio estranho que se assenta na tua
alma. Um negrume pululante de negação a todo princípio de qualquer Idealidade.
Veias rasgadas revestem um crânio aberto em que se expande cada vez
mais a massa encefálica do grotesco. Tentar fugir só vai adiar o confronto
derradeiro, de si para consigo, do Eu com o que esvai todo Eu, escapa de toda
determinação contígua de forma. E mesmo que essa forma cerebral desumana se
insinua, é por mero capricho da imaginação tão suscetível aos incontáveis
horrores projetados pela insidiosa razão em tudo querer ordenar de tal ou tal
modo. O que escapa do reconhecimento é sempre um algo mais, mais sombrio, mais
negro, mais fúnebre, cuja morte de si mesmo deve instintivamente o homem
percorrer. E como em pesadelos há muito esquecidos, de um tempo além do tempo,
tempo esse em que o homem se vê como simples feto no útero, essa figura adentra
o campo como se esse mesmo feto de homem que somos antes de tudo,
sistematicamente rompendo todos os vasos de sangue que se conectam a fim de
nutrir o homem larval na forma de seu próprio aborto de si mesmo. Escorrendo
uma torrente de sangue viscoso e negro do fundo do coração selvagem do homem
por sobre sua alma direto para a lama. Um pântano de ervas daninhas faz nascer
e florescer nesse terreno baldio de si mesmo, como o mais absoluto reduto de
pequenas gárgulas travessas, avessas a toda certeza, toda exatidão do
pensamento. Subsiste tão somente um sentimento de impotência nesse inferno, não
de fogo, mas não deixando de ser tortura. Pois o inferno, se é que há tal
coisa, é a alma escura do homem à plena luz do diabo pentelho que zomba de você
dizendo que não se é capaz de fugir ou esquivar, que não há outra trilha a
tomar do que aquela que leva ao fundo do oceano profundo em que naufragam todos
os barcos da esperança. A correnteza segue seu fluxo, de modo que do dia à
noite se faz num instante, e aquele fino fio de Ariadne que liga o resquício de
sanidade à boca do poço lá em cima é rompido.
Vê-se uma árvore gigantesca, invertida, de ponta cabeça, cujas raízes
se mesclam com as nuvens lá no céu. Um púrpura hipnotizante e um odor
nauseabundo de morte recobre todo o horizonte. A única escapatória é se
entregar, e morrer naquele lugar, se tornar uma carcaça, um casco, um vaso
rompido, para surgir novo, renascido como fruto nos galhos secos e profundos
dessa árvore sinistra. Tudo o que fala através de ti nesse momento é o próprio
mal, não aquele ingênuo e culpável mal humano, mas um certo mal estranho,
estrangeiro em nosso mundo, o forasteiro de um lugar escuso, negro como o mais
obtuso cristal de obsidiana vulcânica, mas que brilha com brilho intenso, um
brilho que não exala luz, mas tão somente mais e mais escuridão. E dessa
escuridão, um eclipse se sobrepõe ao Sol regente e tinge a Terra inteira com
treva como se fosse piche. É insensato olhar para o outro lado, não se
entregar, se ocultar. Só resta aceitar o destino: você foi escolhido para
transmitir uma mensagem, uma prece, um grito de guerra. Você assinou um
contrato antes mesmo de saber quando, como ou por quê. Sua alma é agora
entregue totalmente a uma nova determinação: não há determinação alguma, tudo é
possível, tudo é desejável, tudo é factível. Todo um novo mundo de infinito se
torna possível, um mundo em que só há simulacros e mentiras, pois o divino espírito
santo do deus da moral se assenta na verdade, no imutável. Agora o caminho é
aberto para rasgar aquela pretensiosa constituição denominada tábua sagrada de
leis.
O dia se torna noite, a flores novamente exalam seu aroma noctívago, os malditos dançam, os cascos dos bodes cantam, os sacrifícios são executados em honra ao grande dragão. Crepúsculo do sacro, do eterno, do belo. Pusemos fim, enfim, ao reino do infindável. Os olhos da escuridão postos em você se erguem, o orgulho desta coisa é seu próprio orgulho. Você se exalta, infla, se eleva. As resistências da escuridão são vencidas por elas mesmas, se entregando a elas, se consumindo a partir delas. O Sol se esconde de vergonha, só há a Lua cheia no céu, essa mesma Lua que te guiou todo o caminho com uma luz pálida nos becos suicidas e esquecidos de Deus. Você é algo mais do que era no início, um quê de metamorfose que só a sombra pode conceber. Deus não sabe nada sobre a dor, a vida, o sofrimento ou a vitória. É o caminho alternativo, a via esquerda da estrada, sinistra, tão constantemente maldita que constitui a superação. Só há liberdade cruzando esse Rubicão, mergulhando no mais frio dos rios. Só há certeza pela dúvida, só conquista pela angústia, só há libertação pela servidão. O pesar lúgubre abre os caminhos da vida leve, o ar rarefeito dos cumes desentope as vias aéreas, respira-se com ar renovado. O sofrimento torna duro, como um diamante, que brilha com uma luz negra própria, sem nunca refletir nada. Autônomo, independente, o mal se sustém como força que mata para fazer viver.
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