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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela máxima diabólica da transgressão Lhe solicitamos a benção, ó

O devir da escrita e da leitura

 



São Gerônimo Escrevendo de Caravaggio, 1605. 

Escrever diz respeito mais sobre quem lê do que quem escreve. Obviamente aquele que escreve ou se expressa em palavras tem algo a dizer, contudo cabe somente àquele que lê a verdadeira arte, para além da arte do estilo escrito como arte de interpretação e escavamento das profundezas ocultas da alma daquele que escreve. Tal arte passa por um desprendimento das preconcepções que se tem daquele que escreveu, passando por um deslocamento gravitacional de perspectiva, sendo que cada um que lê tem uma perspectiva particular, não obstante um necessário desvio do tipo de perspectiva que se tem a prioristicamente do que se lê para uma transformação de perspectiva no decorrer da leitura.

Quem escreve, lendo o que si próprio escreveu fica detido num tipo de perspectiva modular que predispõe o texto segundo o que se intencionava dizer, nunca escapando do desejo de fundamento que se instaura no projeto do texto. Somente aquele que lê e, mais profundamente, aquele que lê desconhecendo totalmente a intenção do autor, pode de fato avaliar a consistência ou o desenrolar do texto. Todo escrito possuí uma intenção, mesmo o mais desinteressado dos escritos, sendo tal intenção a de dizer ou expressar algo, sejam sentimentos ou ideias.

A escrita passa sempre pelo processo de uma digressão argumentativa do que se insinua dizer onde, somente em seu resultado final, pode-se de fato avaliar o que se disse de forma concisa ou estabelecer o sentido do que foi dito. O processo do escrever é puro devir, flui de palavra em palavra conforme se projeta algo. De fato, há uma tara teleológica em que o fim represente o processo e cujo desenvolvimento só encontrará real finalidade ou coesão no resultado. Do mesmo modo a leitura se dá como devir, variando de palavra em palavra a interpretação do que se lê. Pode-se objetar que a conclusão da leitura encontra somente razão na última palavra lida do texto, coincidindo com o julgamento formado da obra completa. Tal raciocino é errôneo pois a interpretação se faz enquanto se lê, não quando se conclui a leitura.

É somente no processo que se pode julgar algo, estando dentro da narrativa como travessia. É só percorrendo um caminho que se pode, de fato, estabelecer o julgamento de tal trajeto, não em seu destino, pois o destino pressupõe uma avaliação da totalidade, mas a totalidade é sempre submetida a um ponto de vista que condiciona cada palavra dita com vias desse fim que se alcançou. O mesmo pode ser dito do movimento de escrever, pois é somente no desenvolvimento que há razão de ser no que se escreve. A chegada ao destino de modo algum subsume cada linha e cada palavra do que foi desenvolvido por conta do fim resultar numa totalidade completamente diferente do desenvolvimento. Julgar o que se lê ou o que se escreve pelo fim do texto é análogo a julgar o mar pela totalidade das ondas que o constituem, de modo que cada onda possuí, em si mesma, uma individualidade destoante de todas as outras.

Não se percebe a individualidade de cada frase se se estabelecer como critério o julgamento do todo, mas sim, ao contrário, pela análise de cada palavra dita no interior de uma frase, sua consistência em relação a todas as outras de maneira que se imiscuem como uma coisa só na totalidade. O texto como totalidade é sempre aberto, e aberto como variação de sentença em sentença. O texto completo possuí uma individualidade que difere da individualidade particular de cada frase, e julgar o texto apenas como completo faz escapar cada uma dessas individualidades destoantes entre si.

Um texto pode - e muitas vezes necessariamente vai - variar no estilo da escrita ou na ideia a ser apresentada. Um texto é essencialmente formado por discordância, contradição, incoerência. Cada palavra comporta uma potência de expressão singular que remete sempre a seu ressoar com as outras, no entanto cada qual deve ser julgada em seu lugar de direito: na sentença que ela projeta e se lança. O que se objetiva estabelecer como sentido de um texto se desmancha e se desfaz no decorrer da leitura e escrita. Assim como o autor altera o estado de humor, o sentimento intuído a ser transmitido em cada sentença, o humor do leitor e o sentimento captado por este se altera de frase em frase.

Escrever deve ser um fluxo, um constante desabrochar de novas intenções, de desejos que se encontram na esquina de uma sentença e com o qual se tropeça despretensiosamente. A leitura deve ser o mesmo processo: um descobrimento sempre constante do sentido do texto a cada nova palavra lida. Ler e escrever cabem como processos constantes de destrinchamento onde, de um lado se estabelece um novo sentido ao que foi lido parte por parte que mudam constantemente, e do outro como o sentido daquilo que se intuí expressar também parte por parte, alterando-se constantemente conforme se escreve.

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