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O devir da escrita e da leitura
Escrever
diz respeito mais sobre quem lê do que quem escreve. Obviamente aquele que
escreve ou se expressa em palavras tem algo a dizer, contudo cabe somente
àquele que lê a verdadeira arte, para além da arte do estilo escrito como arte
de interpretação e escavamento das profundezas ocultas da alma daquele que
escreve. Tal arte passa por um desprendimento das preconcepções que se tem
daquele que escreveu, passando por um deslocamento gravitacional de perspectiva,
sendo que cada um que lê tem uma perspectiva particular, não obstante um
necessário desvio do tipo de perspectiva que se tem a prioristicamente do que
se lê para uma transformação de perspectiva no decorrer da leitura.
Quem
escreve, lendo o que si próprio escreveu fica detido num tipo de perspectiva modular
que predispõe o texto segundo o que se intencionava dizer, nunca escapando do
desejo de fundamento que se instaura no projeto do texto. Somente aquele que lê
e, mais profundamente, aquele que lê desconhecendo totalmente a intenção do
autor, pode de fato avaliar a consistência ou o desenrolar do texto. Todo
escrito possuí uma intenção, mesmo o mais desinteressado dos escritos, sendo
tal intenção a de dizer ou expressar algo, sejam sentimentos ou ideias.
A
escrita passa sempre pelo processo de uma digressão argumentativa do que se
insinua dizer onde, somente em seu resultado final, pode-se de fato avaliar o
que se disse de forma concisa ou estabelecer o sentido do que foi dito. O
processo do escrever é puro devir, flui de palavra em palavra conforme se
projeta algo. De fato, há uma tara teleológica em que o fim represente o
processo e cujo desenvolvimento só encontrará real finalidade ou coesão no
resultado. Do mesmo modo a leitura se dá como devir, variando de palavra em
palavra a interpretação do que se lê. Pode-se objetar que a conclusão da leitura
encontra somente razão na última palavra lida do texto, coincidindo com o
julgamento formado da obra completa. Tal raciocino é errôneo pois a
interpretação se faz enquanto se lê, não quando se conclui a leitura.
É
somente no processo que se pode julgar algo, estando dentro da narrativa como travessia.
É só percorrendo um caminho que se pode, de fato, estabelecer o julgamento de
tal trajeto, não em seu destino, pois o destino pressupõe uma avaliação da
totalidade, mas a totalidade é sempre submetida a um ponto de vista que
condiciona cada palavra dita com vias desse fim que se alcançou. O mesmo pode
ser dito do movimento de escrever, pois é somente no desenvolvimento que há
razão de ser no que se escreve. A chegada ao destino de modo algum subsume cada
linha e cada palavra do que foi desenvolvido por conta do fim resultar numa
totalidade completamente diferente do desenvolvimento. Julgar o que se lê ou o
que se escreve pelo fim do texto é análogo a julgar o mar pela totalidade das
ondas que o constituem, de modo que cada onda possuí, em si mesma, uma
individualidade destoante de todas as outras.
Não
se percebe a individualidade de cada frase se se estabelecer como critério o
julgamento do todo, mas sim, ao contrário, pela análise de cada palavra dita no
interior de uma frase, sua consistência em relação a todas as outras de maneira
que se imiscuem como uma coisa só na totalidade. O texto como totalidade é
sempre aberto, e aberto como variação de sentença em sentença. O texto completo
possuí uma individualidade que difere da individualidade particular de cada
frase, e julgar o texto apenas como completo faz escapar cada uma dessas
individualidades destoantes entre si.
Um
texto pode - e muitas vezes necessariamente vai - variar no estilo da escrita
ou na ideia a ser apresentada. Um texto é essencialmente formado por
discordância, contradição, incoerência. Cada palavra comporta uma potência de
expressão singular que remete sempre a seu ressoar com as outras, no entanto
cada qual deve ser julgada em seu lugar de direito: na sentença que ela projeta
e se lança. O que se objetiva estabelecer como sentido de um texto se desmancha
e se desfaz no decorrer da leitura e escrita. Assim como o autor altera o
estado de humor, o sentimento intuído a ser transmitido em cada sentença, o humor
do leitor e o sentimento captado por este se altera de frase em frase.
Escrever
deve ser um fluxo, um constante desabrochar de novas intenções, de desejos que
se encontram na esquina de uma sentença e com o qual se tropeça
despretensiosamente. A leitura deve ser o mesmo processo: um descobrimento sempre
constante do sentido do texto a cada nova palavra lida. Ler e escrever cabem
como processos constantes de destrinchamento onde, de um lado se estabelece um
novo sentido ao que foi lido parte por parte que mudam constantemente, e do
outro como o sentido daquilo que se intuí expressar também parte por parte,
alterando-se constantemente conforme se escreve.
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