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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela m...

O masoquismo do filósofo


Pintura de Francis Bacon, 1946.

Ó doçura gélida, prazer desencantado no fundo do abismo. E como que por um vicio ela se propaga, uma névoa que o sopro frio gruda na pele e se mescla com o próprio Ser no homem que, por desventura e descuido, se vê ali, precipitando-se cada vez mais à sensação pungente que faz vibrar as delicadas notas da fibra que o constituí. Não por uma contraposição à alegria, mas seu próprio corolário, seu mais fundamental princípio. O animal no homem quer sempre institivamente esse traço de vida que a vida só encontra na sua própria negação. Mas não falamos de negar: negar é fugir, dar de costas ao que é trazido por capricho do destino. Ir de encontro é se exaltar, cada vez mais longe, cada vez mais fundo no buraco que o homem cava para se enterrar. Mas como um sempre ir mais longe nesse buraco, cavando fundo até atingir o centro furioso e incandescente da própria Terra. Cada camada rompida um elo quebrado de si mesmo, para com o que se conhece de si. Tarefa ingrata de autodescobrimento, autorrecriação constante.

Não obstante, é só no limiar de si que se descobre, se forja a si mesmo. O olho que tudo consome, consome por sua vez o Eu, e da denominação “Eu” se plorifera, desabrocha na aurora que desponta no final da noite escura uma nova leveza, uma nova perspectiva que quebra as sinuosas e obsessoras tábuas da lei de um velho mundo em decomposição, o mundo do Eu que morre. Eu decrépito e carcomido pela velha fórmula singular o qual se abre, se conjuga, se multifaceta no agregado, na composição, na pluralidade de si que se afirma como mais do que Eu, e se torna, sob o ponto crítico da morte que perpassa sobre o Ser como o ardente corte de uma lâmina contra a pele e dissolve o ponto em linha. O ponto rechaçado para a neutralidade o qual, pela pressão da lâmina contra a carne não encontra outro caminho senão vazar a essência tão denegada, tão fugidia e tão escorregadia do si como o vermelho do desejo de renascer.

O homem não é carne tão somente, pois esta é somente máscara, pela pele que lhe cobre, seu verdadeiro em si. O homem é sangue, e é o sangue que lhe trás toda sua verdadeira faceta. Por que o sangue se esconde dentro do homem? Porque tem a elegância de eludir seu aparecimento, de ser visto somente nos momentos da verdade do homem. O homem, com ele mesmo, alcança o sangue com um corte que não necessita de carne ou pele, na desoladora solidão do Ser, no rasgar, costurar e novamente estraçalhar a ferida do Ser. O Ser é uma ferida que nunca cicatriza pois se cicatrizasse passaria a não Ser, somente memória e nostalgia do Ser. Mas talvez haja, na própria ferida do Ser, uma velha cicatriz que tentamos sempre reabri-la e percorre-la para que o Ser deixe de ser nostalgia, reminiscência, rememoração e tomemos o ato da ferida do Ser como atual, presentemente intensiva como dor que transcende a carne.

A dor do Ser, quem nunca a sentiu jamais se deleitou o mais extremo transbordamento de prazer, a sensação erótica do si mesmo que volta contra o Ser o açoite do pensamento. Que podemos chamar isso senão um exercício masoquista das faculdades? Que o Ser fique de quatro e com as costas brilhantes de vermelho por ter sua essência vazada pelo golpear constante das cruéis ferramentas do pensamento. Que o orgasmo suplicante do Ser seja nada mais que o desvelar da natureza sórdida do homem, o oculto, a angústia vergonhosa de se ver uma vez e para sempre desnudo sob o olhar calculado e silencioso de seu déspota. Seja o filósofo aquele que incide sobre si mesmo o martírio de sua ignorância, e como pressuposto único de sua nudez, como Ser, sendo não saber de nada, absolutamente. E a cada vez que pergunta “o que?” “por que?”, “para que?”, o chicote rebenta sobre sua carne. “Sim, me dê mais disso, me bata mais, mais forte, incessantemente até que eu implore para que você pare”. Até que pare de perguntar, de se querer ver o que tem de fundo do Ser. O filósofo experimenta o prazer de seu conhecer até que sua carne não consiga mais suportar. E o que é a carne do filósofo senão sua sanidade, sua estreita noção de certeza, de “verdade”. No fundo obscuro do Ser, na nudez absoluta do corpo marcado do Ser, se encontra nada mais que uma grande e eterna noite de ignorância.

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