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O masoquismo do filósofo
Ó
doçura gélida, prazer desencantado no fundo do abismo. E como que por um vicio
ela se propaga, uma névoa que o sopro frio gruda na pele e se mescla com o
próprio Ser no homem que, por desventura e descuido, se vê ali, precipitando-se
cada vez mais à sensação pungente que faz vibrar as delicadas notas da fibra
que o constituí. Não por uma contraposição à alegria, mas seu próprio
corolário, seu mais fundamental princípio. O animal no homem quer sempre
institivamente esse traço de vida que a vida só encontra na sua própria
negação. Mas não falamos de negar: negar é fugir, dar de costas ao que é
trazido por capricho do destino. Ir de encontro é se exaltar, cada vez mais
longe, cada vez mais fundo no buraco que o homem cava para se enterrar. Mas
como um sempre ir mais longe nesse buraco, cavando fundo até atingir o centro
furioso e incandescente da própria Terra. Cada camada rompida um elo quebrado de
si mesmo, para com o que se conhece de si. Tarefa ingrata de autodescobrimento,
autorrecriação constante.
Não
obstante, é só no limiar de si que se descobre, se forja a si mesmo. O olho que
tudo consome, consome por sua vez o Eu, e da denominação “Eu” se plorifera,
desabrocha na aurora que desponta no final da noite escura uma nova leveza, uma
nova perspectiva que quebra as sinuosas e obsessoras tábuas da lei de um velho
mundo em decomposição, o mundo do Eu que morre. Eu decrépito e carcomido pela
velha fórmula singular o qual se abre, se conjuga, se multifaceta no agregado,
na composição, na pluralidade de si que se afirma como mais do que Eu, e se torna,
sob o ponto crítico da morte que perpassa sobre o Ser como o ardente corte de
uma lâmina contra a pele e dissolve o ponto em linha. O ponto rechaçado para a
neutralidade o qual, pela pressão da lâmina contra a carne não encontra outro
caminho senão vazar a essência tão denegada, tão fugidia e tão escorregadia do
si como o vermelho do desejo de renascer.
O
homem não é carne tão somente, pois esta é somente máscara, pela pele que lhe
cobre, seu verdadeiro em si. O homem é sangue, e é o sangue que lhe trás toda
sua verdadeira faceta. Por que o sangue se esconde dentro do homem? Porque tem
a elegância de eludir seu aparecimento, de ser visto somente nos momentos da
verdade do homem. O homem, com ele mesmo, alcança o sangue com um corte que não
necessita de carne ou pele, na desoladora solidão do Ser, no rasgar, costurar e
novamente estraçalhar a ferida do Ser. O Ser é uma ferida que nunca cicatriza
pois se cicatrizasse passaria a não Ser, somente memória e nostalgia do Ser.
Mas talvez haja, na própria ferida do Ser, uma velha cicatriz que tentamos
sempre reabri-la e percorre-la para que o Ser deixe de ser nostalgia,
reminiscência, rememoração e tomemos o ato da ferida do Ser como atual,
presentemente intensiva como dor que transcende a carne.
A
dor do Ser, quem nunca a sentiu jamais se deleitou o mais extremo
transbordamento de prazer, a sensação erótica do si mesmo que volta contra o
Ser o açoite do pensamento. Que podemos chamar isso senão um exercício
masoquista das faculdades? Que o Ser fique de quatro e com as costas brilhantes
de vermelho por ter sua essência vazada pelo golpear constante das cruéis
ferramentas do pensamento. Que o orgasmo suplicante do Ser seja nada mais que o
desvelar da natureza sórdida do homem, o oculto, a angústia vergonhosa de se
ver uma vez e para sempre desnudo sob o olhar calculado e silencioso de seu
déspota. Seja o filósofo aquele que incide sobre si mesmo o martírio de sua
ignorância, e como pressuposto único de sua nudez, como Ser, sendo não saber de
nada, absolutamente. E a cada vez que pergunta “o que?” “por que?”, “para
que?”, o chicote rebenta sobre sua carne. “Sim, me dê mais disso, me bata mais,
mais forte, incessantemente até que eu implore para que você pare”. Até que
pare de perguntar, de se querer ver o que tem de fundo do Ser. O filósofo
experimenta o prazer de seu conhecer até que sua carne não consiga mais
suportar. E o que é a carne do filósofo senão sua sanidade, sua estreita noção
de certeza, de “verdade”. No fundo obscuro do Ser, na nudez absoluta do corpo marcado
do Ser, se encontra nada mais que uma grande e eterna noite de ignorância.
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