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Destaques

Lua

Hécate, deusa grega das encruzilhadas, por Stéphane Mallarmé, 1880. Ah, Hécate, no desvelar da lua A noite obscura encobre o sombrio segredo Do poder oculto e fugidio do aparecer  Na noite eterna que encobre em mistério Soturna e lúgubre a verdade esquecida Entre memórias há muito perdidas e apodrecidas Do que se tem como a luz que emana de ti  Vendo agora, no clarão sombrio  Da noite que engole o Ser e o Mundo  E seu Abismo de negrume e Nada Somos tragados adentro da magia da deusa Hécate, nos abençoe e fortaleça Seu glóbulo ocular entre-nuvens  Disperso porém presente, vívido porém evanescente Somos reféns de ti nas noites de glória Ao grande Sabá cósmico à Máquina Tanatoerótica  De Nosso Senhor Dioniso, expressão viva Da tripartite de seu do rito profano  Deus coroado das terras da Frígia  Gerado, destroçado e germinado  Para ascender do Abismo da destruição  Delirante de alegria orgástica em seu ato de Sacrifício   E pela m...

Esquecimento


Metamorfose II de Vladimir Kush

O que desejo, de fato, é que cada membro e parte de meu corpo decadente floresça para um novo amanhã. Se a vida se esvai de mim como que perdendo-se através de dedos ensaboados, eu só busco um dia a mais para parir algo que valha a pena, um algo ou alguma coisa que represente a bela natureza eterna do mundo. Um adágio ao tempo, como a sinfonia da eternidade, a canção a se entoar no funeral de Deus. O futuro se abre enfim, indeterminado, desconhecido, aberto até amplo horizonte de um mar a ser explorado. Em cada mar há seus monstros, cautela é necessária para não naufragar ou ser naufragado por um Leviatã errante. O mergulho profundo no abismo requer coragem, nem todos encaram os demônios escondidos no armário, e a mente como um sinuoso labirinto com inumeráveis corredores que desembocam em becos sem saída é a todo momento patrulhado pelo sinistro Minotauro de nossos medos e pesadelos. O bicho-papão não é um monstro como qualquer outro, ele se faz da forma do que mais se teme. Qualquer coisa pode sair disso, do mais simplório ao mais abstrato, o espírito e a profundeza de cada homem são percorridos para encontrar seu medo mais abissal. Não é questão de escolha, as vezes nem mesmo se sabe o que se teme até o momento em que se sente medo pela primeira vez.

Por mais que se tente esquivar e buscar demasiadamente olhar por um ângulo mais luminoso do mundo, ver as curvas belas que fazem as voltas da Terra, amiúde somos tragados de volta por uma inquietação da mente que torna ao status quo da preocupação com as adversidades da vida. Sempre existe aquele espinho no sapato que aperta desconfortavelmente o caminhar e que impede de tornar leve o pensar e o viver, que traz para baixo toda reflexão e consiste em puro pessimismo com a vida. A superação desses pensamentos é um exercício de vontade e esquecimento, entretanto a consciência solitária em seu passear pelo olhar ao redor, nas memórias perdidas acaba sempre por trazer à tona uma ou outra recordação, feliz ou infeliz que ressuscita um sentimento angustiante que demora a passar, como uma queimadura cuja ardência persiste por longo tempo mesmo após o ferimento.

O ser humano é um animal instigável, todo efeito da consciência presente no ser humano é resultado de uma instigação exterior. Dessa maneira toda angústia ou inquietação que assola o espírito tem sua origem no mundo exterior, na instigação de um agente externo do mundo onde existe uma experiência empírica com tal. Mesmo toda memória onde a mente vasculha para encontrar um problema aparentemente inexistente a fim de criar um rebuliço nas emoções tem sua origem em algum momento em um contato com o mundo real. Não existe assim uma inquietação do espírito puramente a priori pois seria inconcebível tentar propor algo como a angústia em relação a algo que não se já tenha de alguma maneira entrado em contado, mesmo que de maneira indireta, como a morte.

O caminhar torna seleto os pensamentos, traz à tona vivas ideias que na clareza do ócio não aparecem com tanta facilidade. Um estímulo ao cérebro que põe em movimento as engrenagens da máquina reflexiva é o ato de caminhar. Contudo é como uma peça que enrosca e que trava o maquinário o sentimento da inquietação com o algo que está errado, mesmo que nada esteja de fato. Por mesmo que seja uma autossabotagem do espírito em imiscuir em si mesmo tais angústias e preocupações infundadas com o passado, tornando-se pesado de carregar e impedindo que seja possível flutuar pelas auroras boreais de possibilidades. As inquietações, entretanto, acabam por muitas vezes nos sendo úteis formas de reflexão, como por exemplo agora, onde tomamos sua força perturbadora e voltamos contra ela mesma e tornamos ela, de certa maneira, algo reflexivo ao menos, para que não seja de todo um pensamento negativo, mas que dela surja algo de positivo.

Quando escrevo me purifico do que há de ruim em mim, do que sinto que seja negativo na minha personalidade. Cada palavra que sai do meu espirito é como veneno, cada letra que goteja de meus dedos é como ácido que corrói meus sentimentos. Toda culpa, vergonha, medo, tristeza, dor, tudo isso condensado em linguagem para que todo esse mal não escape de sua prisão em forma de palavras e me consuma por inteiro. Todo texto que escrevo é um processo de filtragem do meu sangue, pois toda palavra verdadeira que se quer ser dita é escrita em sangue, quem não fala através da voz do espirito não fala em absoluto. Escrever para mim é uma maneira de aliviar a consciência, de certa maneira na medida do possível, purgar a mente de demônios. Quando o espirito fala, não é necessário que existam ouvidos para escutar ou olhos para ler, o ato em si é que consiste na terapia. Mas deve haver martírio na criação, e alegria e gozo. Pois tudo o que estraçalha, despedaça, corrói e rompe faz o caminho para que se endureça, fique mais resistente, e se desenvolva. Que a tormenta caia sobre o casulo antes da borboleta sair e voar. A volúpia do sofrimento não consiste em ter prazer na dor, mas sim em que tal dor não será capaz de quebrar o espirito e será, assim como toda sucessão de dor anterior, superada e transformada em combustível para o desejo de vida.

Existem pensamentos em nós que nos causam vergonha quando passado o momento da raiva, essa é a mais solitária agonia da consciência, não poder apagar o que se foi um dia desejado em um estado de espírito de tristeza ou ódio, da lembrança. Seríamos nós monstros apenas por considerar algumas coisas quando nossas paixões negativas se afloram? Existe realmente no homem algo que o impele naturalmente à crueldade? Ou somos nós capazes de superar isso através de nossas escolhas? É possível talvez conviver com o abismo em nós, sobrepujara-lo e fazer dele nossa força para escalar o fosso rumo a superação de nós mesmos. Não são necessariamente nossos pensamentos mais obscuros que nos formam, mas nossas escolhas, a partir das marcas que eles deixam, do que fazer de nossas vidas: deixar-se afundar pelo peso dessa sombra, ou superar a gravidade por ela exercida e seguir rumo ao sol.

O espírito humano é como a corda de um instrumento musical: se bem tensionada e com o arranjo correto, pode dar à luz belíssimas melodias, se não for apertada o suficiente, o som saíra desagradável, mas se tensionada demasiadamente, parte-se. O mesmo ocorre com as pessoas, e dessa maneira é sempre necessária uma dose certa de sofrimento na vida para se endurecer e moldar a si mesmo. Pouca ou nenhuma dor cria pessoas fracas e suprassensíveis, já o excesso do peso da adversidade nos ombros de alguém pode levar ao desespero ou ao laço da corda. A dor, o sofrimento, são elementos essenciais na vida de um ser humano, pois todo aquele que não foi agraciado pelo destino com a sorte dos privilegiados de nascimento, um dia sofreu sobre essa Terra, e cabe a este fazer desse sofrimento sua força, dessa dor sua potência, usar dessa energia para criar em si algo além do que o mundo fez deste.

Sair do status quo, fazer de cada transformação uma queda no precipício. Uma pequena morte a cada vez que se experimenta algo novo, e não há necessidade de fatalismos para isso, sempre deixamos algo para trás quando mudamos. A serpente quando troca de pele se desfaz de seu antigo eu. Esquecer, esquecer cada vez mais, mas não ao ponto de se tornar amnésico por completo. Precisamos ao menos lembrar onde fica nossa casa. A terra natal é uma lembrança natural nos animais. Todo o resto, toda lembrança que nos aprisiona deve ser descartada. A memória é uma corrente para com o passado. Libertar o futuro significa desvencilhar a ação do presente da causalidade e entregá-lo tão somente à indeterminação completa. Destino, mas não mais remetido ao "foi" como seu condicionante, mas sim ao "será" como seu impulsionador.


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