Destaques
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Esquecimento
O
que desejo, de fato, é que cada membro e parte de meu corpo decadente floresça
para um novo amanhã. Se a vida se esvai de mim como que perdendo-se através de
dedos ensaboados, eu só busco um dia a mais para parir algo que valha a pena,
um algo ou alguma coisa que represente a bela natureza eterna do mundo. Um
adágio ao tempo, como a sinfonia da eternidade, a canção a se entoar no funeral
de Deus. O futuro se abre enfim, indeterminado, desconhecido, aberto até amplo
horizonte de um mar a ser explorado. Em cada mar há seus monstros, cautela é
necessária para não naufragar ou ser naufragado por um Leviatã errante. O
mergulho profundo no abismo requer coragem, nem todos encaram os demônios
escondidos no armário, e a mente como um sinuoso labirinto com inumeráveis
corredores que desembocam em becos sem saída é a todo momento patrulhado pelo
sinistro Minotauro de nossos medos e pesadelos. O bicho-papão não é um monstro
como qualquer outro, ele se faz da forma do que mais se teme. Qualquer coisa
pode sair disso, do mais simplório ao mais abstrato, o espírito e a profundeza
de cada homem são percorridos para encontrar seu medo mais abissal. Não é
questão de escolha, as vezes nem mesmo se sabe o que se teme até o momento em
que se sente medo pela primeira vez.
Por
mais que se tente esquivar e buscar demasiadamente olhar por um ângulo mais
luminoso do mundo, ver as curvas belas que fazem as voltas da Terra, amiúde
somos tragados de volta por uma inquietação da mente que torna ao status quo da
preocupação com as adversidades da vida. Sempre existe aquele espinho no sapato
que aperta desconfortavelmente o caminhar e que impede de tornar leve o pensar
e o viver, que traz para baixo toda reflexão e consiste em puro pessimismo com
a vida. A superação desses pensamentos é um exercício de vontade e
esquecimento, entretanto a consciência solitária em seu passear pelo olhar ao
redor, nas memórias perdidas acaba sempre por trazer à tona uma ou outra
recordação, feliz ou infeliz que ressuscita um sentimento angustiante que
demora a passar, como uma queimadura cuja ardência persiste por longo tempo
mesmo após o ferimento.
O
ser humano é um animal instigável, todo efeito da consciência presente no ser
humano é resultado de uma instigação exterior. Dessa maneira toda angústia ou
inquietação que assola o espírito tem sua origem no mundo exterior, na
instigação de um agente externo do mundo onde existe uma experiência empírica
com tal. Mesmo toda memória onde a mente vasculha para encontrar um problema
aparentemente inexistente a fim de criar um rebuliço nas emoções tem sua origem
em algum momento em um contato com o mundo real. Não existe assim uma
inquietação do espírito puramente a priori pois seria inconcebível
tentar propor algo como a angústia em relação a algo que não se já tenha de
alguma maneira entrado em contado, mesmo que de maneira indireta, como a morte.
O
caminhar torna seleto os pensamentos, traz à tona vivas ideias que na clareza
do ócio não aparecem com tanta facilidade. Um estímulo ao cérebro que põe em
movimento as engrenagens da máquina reflexiva é o ato de caminhar. Contudo é
como uma peça que enrosca e que trava o maquinário o sentimento da inquietação
com o algo que está errado, mesmo que nada esteja de fato. Por mesmo que seja
uma autossabotagem do espírito em imiscuir em si mesmo tais angústias e
preocupações infundadas com o passado, tornando-se pesado de carregar e
impedindo que seja possível flutuar pelas auroras boreais de possibilidades. As
inquietações, entretanto, acabam por muitas vezes nos sendo úteis formas de
reflexão, como por exemplo agora, onde tomamos sua força perturbadora e
voltamos contra ela mesma e tornamos ela, de certa maneira, algo reflexivo ao
menos, para que não seja de todo um pensamento negativo, mas que dela surja
algo de positivo.
Quando escrevo me purifico do que há de ruim em
mim, do que sinto que seja negativo na minha personalidade. Cada palavra que
sai do meu espirito é como veneno, cada letra que goteja de meus dedos é como
ácido que corrói meus sentimentos. Toda culpa, vergonha, medo, tristeza, dor,
tudo isso condensado em linguagem para que todo esse mal não escape de sua
prisão em forma de palavras e me consuma por inteiro.
Todo texto que escrevo é um processo de filtragem do meu sangue, pois toda
palavra verdadeira que se quer ser dita é escrita em sangue, quem não fala
através da voz do espirito não fala em absoluto. Escrever para mim é uma
maneira de aliviar a consciência, de certa maneira na medida do possível,
purgar a mente de demônios. Quando o espirito fala, não é necessário que
existam ouvidos para escutar ou olhos para ler, o ato em si é que consiste na
terapia. Mas deve haver martírio na criação, e alegria e gozo. Pois tudo o que
estraçalha, despedaça, corrói e rompe faz o caminho para que se endureça, fique
mais resistente, e se desenvolva. Que a tormenta caia sobre o casulo antes da
borboleta sair e voar. A volúpia do sofrimento não consiste em ter prazer na
dor, mas sim em que tal dor não será capaz de quebrar o espirito e será, assim
como toda sucessão de dor anterior, superada e transformada em combustível para
o desejo de vida.
Existem pensamentos em nós que nos causam
vergonha quando passado o momento da raiva, essa é a mais solitária agonia da
consciência, não poder apagar o que se foi um dia desejado em um estado de
espírito de tristeza ou ódio, da lembrança. Seríamos nós monstros apenas por
considerar algumas coisas quando nossas paixões negativas se afloram? Existe
realmente no homem algo que o impele naturalmente à crueldade?
Ou somos nós capazes de superar isso através de nossas escolhas? É possível
talvez conviver com o abismo em nós, sobrepujara-lo e fazer dele nossa força
para escalar o fosso rumo a superação de nós mesmos. Não são necessariamente
nossos pensamentos mais obscuros que nos formam, mas nossas escolhas, a partir
das marcas que eles deixam, do que fazer de nossas vidas: deixar-se afundar
pelo peso dessa sombra, ou superar a gravidade por ela exercida e seguir rumo
ao sol.
O espírito humano é como a corda de um
instrumento musical: se bem tensionada e com o arranjo correto, pode dar à luz
belíssimas melodias, se não for apertada o suficiente, o som saíra
desagradável, mas se tensionada demasiadamente, parte-se. O mesmo ocorre com as
pessoas, e dessa maneira é sempre necessária uma dose certa de sofrimento na
vida para se endurecer e moldar a si mesmo. Pouca ou nenhuma dor cria pessoas fracas e suprassensíveis, já o
excesso do peso da adversidade nos ombros de alguém pode levar ao desespero ou
ao laço da corda. A dor, o sofrimento, são elementos essenciais na vida de um
ser humano, pois todo aquele que não foi agraciado pelo destino com a sorte dos
privilegiados de nascimento, um dia sofreu sobre essa Terra, e cabe a este
fazer desse sofrimento sua força, dessa dor sua potência, usar dessa energia
para criar em si algo além do que o mundo fez deste.
Sair
do status quo, fazer de cada transformação uma queda no precipício. Uma pequena
morte a cada vez que se experimenta algo novo, e não há necessidade de
fatalismos para isso, sempre deixamos algo para trás quando mudamos. A serpente
quando troca de pele se desfaz de seu antigo eu. Esquecer, esquecer cada vez
mais, mas não ao ponto de se tornar amnésico por completo. Precisamos ao menos
lembrar onde fica nossa casa. A terra natal é uma lembrança natural nos
animais. Todo o resto, toda lembrança que nos aprisiona deve ser descartada. A
memória é uma corrente para com o passado. Libertar o futuro significa
desvencilhar a ação do presente da causalidade e entregá-lo tão somente à
indeterminação completa. Destino, mas não mais remetido ao "foi" como
seu condicionante, mas sim ao "será" como seu impulsionador.
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Comentários
Postar um comentário